Nesta reportagem, trazemos a história de Paloma Marques e de seu retrato feito pelo fotógrafo Celso Brandão, em 1993, no povoado Porto da Rua, em São Miguel dos Milagres, litoral norte de Alagoas. Paloma é uma mulher transexual, há 23 anos mora em Porto de Pedras, também no litoral, e atuou como artista circense, rainha do carnaval do município, estilista, costureira e decoradora. Em sua trajetória, enfrentou a pressão familiar, dos moradores da cidade e os abusos para se tornar livre.
Reportagem: Jamerson Soares
Orientação: Janayna Ávila
"Eu sou uma donzela. Sempre fui uma fauna no cio". Paloma Luz Vida Terra Marques, 60 anos, repete essas palavras várias vezes durante o dia, que começa sempre com um suco de jurubeba adoçado com mel. Ela diz que o suco ajuda no intestino, na imunidade e é bom para o fígado. Enquanto prepara também o café, Paloma canta de forma apaixonada e envolvente A Paixão, música interpretada pela cantora Rosana. Ela mora em uma casa de sítio com seu marido, cerca de 30 anos mais novo que ela, na Praia de Lages, em Porto de Pedras, litoral alagoano, localizada a mais de 100 km de Maceió. É mais ou menos duas horas de viagem.
Paloma é uma mulher transexual que nos anos 80 protagonizou desfiles e bailes de carnaval no litoral norte de Alagoas e já trabalhou costurando roupas para personalidades da elite local e da capital, além de ter decorado festas e feito shows musicais. Ela já atuou em diferentes áreas profissionais.
A artista foi retratada pelo fotógrafo alagoano Celso Brandão. Celso relatou que o retrato foi feito no povoado Porto da Rua, em São Miguel dos Milagres, em 1993. Já Paloma contou que a foto foi realizada no povoado Tatuamunha. Esse mesmo retrato ganhou espaço em exposições nacionais e internacionais junto com um acervo de fotografias em preto e branco, como também foi inserido no livro Caixa-Preta, publicado em 2016, pela editora Madalena, de São Paulo, em coautoria com a Contrasto, da Itália.
É uma sexta-feira nublada, com cheiro de terra molhada, lenha queimada e café coado, tradição no interior. Em frente à casa de Paloma, a avenida General Luiz de França Albuquerque se infla de poeira e maresia, e de veículos ocupados por turistas que visitam a praia. Entre a ida e a vinda de carros, há moradores e motoristas de outras regiões que costumam passar na frente da casa de Paloma para buzinar ao vê-la desfilando na calçada.
Enquanto o muro da casa é reconstruído com cercas de madeira, Paloma caminha sob a pompa e o prestígio de gostar de ser o que é e acena para os motoristas. Paloma gosta de estar no comando e prefere realizar as coisas do jeito que planejou. Se o plano não deu certo, ela insiste mais uma vez na ideia até conseguir. "Eu sou muito determinada. Se algo não der certo na primeira vez, eu vou lá e tento de novo e isso pode ser entendido de outra forma pelas pessoas. Talvez seja irritante", diz.
Há uma caixa de som amplificada na porta da casa reproduzindo MPB e músicas internacionais, a maioria romântica, no volume máximo. Jerry Adriani, Joanna, Bon Jovi, Roxette, entre outros. Paloma é disléxica e míope e, aparentemente, hiperativa. Não para um minuto. O tempo em que permanece acordada parece estar sempre tentando consertar e arrumar coisas fora do lugar, como pedaços de tecidos espalhados pelo chão, pela cama, pela cadeira da sala, lençóis, almofadas, garrafas de cerveja. Nada escapa ao seu senso de organização. Mas sempre fica algo fora do lugar ou espalhado pela casa.
A casa é grande, espaçosa, simples, traz na fachada as cores rosa e azul turquesa, e é composta por quatro cômodos, entre eles seu ateliê. Lá fora, enquanto visito a casa, o vento passa por árvores e anuncia que vai chover.
"Eita que essa música é de arrombar uma donzela!", Paloma diz isso reagindo espontaneamente ao ouvir a música It Must Have Been Love, de Roxette, no momento em que ajeitava, com o pedreiro, algumas madeiras da cerca que estavam fora do lugar. "Eu tenho um olhar de costureira, sou muito perfeccionista, tenho um olhar de medida e sei o que está torto ou não", afirma.
Paloma é um furacão em chamas. Sempre anda maquiada, com um cheiro forte de hidratante amadeirado, vestida com um biquíni branco e uma saída de praia transparente da cor vermelho-paixão. Ela adora vermelho, diz que é uma cor ardente, do amor. De cabelos loiros, compridos e cacheados, a estilista retoca o batom vermelho de 15 em 15 minutos. Não há vergonha, não há medo, não há reserva. Paloma expressa sua personalidade em forma de sinceridade, piadas e bordões de cunho sexual. Ela também tem um olhar crítico e meticuloso, direto ao ponto, um tanto intimidador. Gosta de ver e ter coisas consideradas bonitas e rejeita o feio. "Se você fosse feio nem entraria na minha casa. Gosto de homem bonito, sem barba, fogoso", brinca Paloma com a reportagem.
Há uma bandeira branca hasteada na varanda da casa e uma pomba desenhada em uma parede próximo aos telhados. Segundo Paloma, "é para as pessoas verem que nesta casa só tem paz". Há também a frase "tudo por amor" pintada perto da porta de entrada. Ela considera o lema de sua vida.
Apesar do bom humor e das brincadeiras, Paloma se fecha em seu casulo quando é questionada sobre seu passado. Ela não gosta do tempo. Não lembra dos anos exatos. "Eu odeio o tempo. Porque o tempo passa muito rápido. Evito pensar nele, não guardo data nem ano, nada. A velhice está na cabeça das pessoas. Só tenho a impressão de que nasci ontem. Odeio a velhice, a velhice é a treva", diz ela, aborrecida e impaciente.
Infância, família e uma mãe que não abraçava
Paloma conta um pouco sobre a sua infância e adolescência
"Eu acho que vim ao mundo para pagar os pecados de minha mãe", desabafa Paloma, pensativa ao lembrar do que passou com a mãe e com a família. As palavras da artista saem descompassadas, fragmentadas e um pouco perdidas no tempo. As lembranças não são ditas em uma espécie de cronologia exata, organizada. É como se ela lembrasse dos acontecimentos e quisesse guardar em um cofre do coração, para sofrer sozinha, sem compartilhar as angústias com os outros. Ela diz não gostar de expor um rosto triste para o público. Paloma tenta se esquivar da tristeza com o bom humor e a música.
Paloma, desconfiada, tenta esconder sua data de nascimento, mas logo em seguida, depois de pensar muito, revela-se. A estilista nasceu no dia 17 de janeiro de 1962, em São Miguel dos Milagres, em um parto natural conturbado. Ela é fruto de Eunice Luz Marques com um homem casado, que sumiu depois de saber da gravidez da amante. O parto aconteceu na casa da bisavó de Paloma, Amélia, em Porto da Rua, com o auxílio de uma parteira. "A casa era de taipa, chão de terra, tinha um velho forno à lenha. É como se eu visse na minha frente agora. A placenta do parto está enterrada no quintal até hoje".
Na casa de Paloma, perto de uma televisão e um abajur feito pela artista, há um quadro com o desenho de uma jovem mulher encarando quem a olha de volta. A jovem tem um decote à mostra, olhos grandes e imersivos, traços finos. A mulher é Eunice e foi desenhada pela própria Paloma. "É a minha mãezinha", diz.
A estilista interrompe a conversa, como um tique súbito e nervoso, e vê o que tem para fazer no jardim. Ela também observa o serviço do pedreiro, se ele está fazendo correto ou não. Pega a mangueira que está perto da escultura e lava a terra. Durante a atividade, Paloma fala com os vizinhos que passam na frente da casa. "Ô vizinha, pegou homem hoje? Pegou espiga grossa ou fina? Ai, que calor grosso e grande". Ela diz isso com a maior naturalidade, os vizinhos parecem estar acostumados. O vocabulário de Paloma é composto por palavras obscenas, também sérias e concretas; frases e bordões com piadas, satírica, de sacanagem, sempre com teor sexual.
Paloma não consegue lembrar das datas, mas assim como costura retalhos e almofadas com maestria, também consegue juntar fragmentos do seu passado. Josivaldo, Júlia Greice, Ana Lúcia, Paulo, Adriano, Edvaldo - esse último era o mais novo e morreu aos 30 anos - são os nomes dos seus irmãos. A decoradora de Porto de Pedras não lamenta o que viveu, apesar das poucas condições da família. Segundo ela, não sentia falta de nada, vivia no campo, e todos tinham o melhor que a vida deu: a natureza.
"A gente nunca passou fome. Vínhamos de uma família humilde, sem muitas condições, sem uma boa estrutura familiar, uma vida na roça, mas nunca passamos fome. Meus avós trabalhavam na terra. Por isso que hoje eu amo a vida no campo, tenho uma casa no meio da selva. Riqueza maior é essa: frutas, flores, plantas, um rio". Não é à toa que Paloma tem no jardim pés de mangas e bananeiras, além de um pé de orquídea vermelha e branca, que trata com muito carinho.
Paloma foi criada com a avó e seus tios. Ela explicou que a mãe dela não se importava com a vida e não prestava muita atenção nos filhos. “Mãezinha se relacionava com vários homens, chegou a abortar várias vezes”.
Paloma conta que cada irmão dela é fruto de cada homem que sua mãe se relacionou. Ela nunca chegou a conhecer seu lado paterno. Sem lembrar do ano, ela conta que sua mãe deu dois irmãos para serem criados por outras pessoas na capital porque, segundo Paloma, ela não tinha responsabilidade nem amor. Hoje, as irmãs não têm nenhuma ligação com o resto da família e ficaram com raiva porque entenderam que foram abandonadas pela mãe.
Paloma lembra que, uma vez, Paulo, um de seus irmãos, que chegou a viver com sua mãe quando ela foi para Maceió, tempos mais tarde procurou a mãe em Porto de Pedras para ela conhecer o neto, filho dele. Sua mãe não deu importância ao neto. Conheceu, mas não queria ter contato.
A mãe da artista não a aceitava, nunca abraçava nenhum dos filhos, não ligava para carinho e afeto. "Mãezinha era muito dura, fria, não me abraçava, fazia as coisas por impulso, mas era muito forte, firme, vivia maquiada e bonita, independente. Às vezes a gente brigava, discutia, porque ela não gostava do meu jeito de ser".
Eunice foi morar em Maceió para tentar uma nova vida sozinha, levou apenas um filho e deixou os outros com a avó Amélia. À medida que Paloma ia crescendo, a família percebia que algo diferente acontecia com a artista, somente ela mesma que não entendia. Paloma se sentia mulher desde os oito anos. "Tinha vez que meus tios, avós e vizinhos cochichavam quando eu passava. Minha avó me batia com um fio quando eu tentava sair, meus tios me escondiam, me batiam, me machucavam, para as pessoas não me verem por causa da minha sexualidade", relata Paloma.
A menina transgênero também passou por vários psicólogos e médicos psiquiatras na infância. Foi a família que a levou achando que tinha algo errado com a cabeça dela por causa de sua identidade de gênero.
Em estado de epifania, com um olhar fundo para o nada e a voz cansada, que oscilava entre aguda e grave, Paloma Marques conta que com menos de 10 anos já era comparada a outra travesti de São Miguel dos Milagres, identificada como Veridiana. Paloma estava no quintal da casa da avó, apoiada em um muro, e o avô dela comentou com a esposa, olhando para Paloma: “Esse menino vai ficar que nem Veridiana”. Paloma ouviu esse comentário e a princípio não entendeu. Ficou com aquilo na cabeça por horas. Veridiana foi uma travesti que também viveu em São Miguel dos Milagres e era muito conhecida na região. Para o avô de Paloma, Veridiana era um “homem que se vestia de mulher”.
Foi no comentário do avô que Paloma ouviu a primeira vez a palavra transexualidade, mas não entendia direito. Paloma conta que a avó era ranzinza, maldosa, batia nela e a deixava presa em casa. Mesmo com todas essas características, Paloma amava a avó e se inspirava bastante nela porque ela era determinada e inteligente. A avó de Paloma foi uma referência para ela, uma entidade viva. Amélia e Eunice já morreram.
Perto da sala da casa há uma máquina de costura antiga que ainda funciona e em cima dela está escrito "Paloma e Tatá", com um coração do lado. Na mesa, alfinetes, mais retalhos, tesouras e zípers.
Paloma volta a terminar a conversa contando que Eunice morreu aos 80 anos por causa da idade, hipertensão e transtornos psiquiátricos. Ela diz que Eunice morreu em seus braços, em Maceió, em junho de 2019. A mãe, que não abraçava, foi acolhida e cuidada por Paloma. "Passei até por um período depressivo, fiquei sem comer, sem receber gente, quase eu ia morrendo, mas estou aqui. Por isso odeio a velhice, ela mata. Quando vem a tristeza eu faço de tudo para colocar ela para longe".
Durante a jornada, a decoradora também teve quatro filhos e muitos netos, frutos do carinho e do afeto que ela deu desde quando eles eram pequenos. Paloma os criou até ficarem adultos e se casarem. Ela também foi acolhida por pais do coração após a morte de sua mãe biológica, e os chamam de mãezinha e paizinho. Vivem em uma fazenda localizada na zona rural de Porto de Pedras. Com eles, Paloma não se sente tão só.
Tentativa de estupro
Com 11 anos, a menina travesti era apaixonada por corpos masculinos, pela natureza e pelo brilho, mas ainda tinha pavor do desconhecido. Era uma leoa que sempre gostava de floresta. “Fui criada na selva”, afirma. Ela costumava ir ao rio próximo ao local onde mora para observar escondido os meninos nus tomando banho. Paloma tinha ido também pegar caju. Era local de mata, havia muitos cajueiros.
Um certo dia, um primo dela chamado Carlinhos a descobriu, mas não falou nada. Paloma esperou todos saírem do rio para também tomar banho. Em um determinado momento, o primo esperou todo mundo sair e subitamente agarrou Paloma e tentou abusar sexualmente dela. Carlinhos tinha 18 anos, tentou estuprar Paloma, mas não conseguiu porque uma mulher apareceu na hora e evitou o pior.
Frágil, Paloma não estava entendendo o que significava a atitude do primo. “Eu não entendia o que era aquilo, eu só fui pegar caju e tomar banho no rio, mas ele me dizia que eu tinha que fazer aquilo. Ele dizia que eu tinha que fazer com ele o que eu fiz com Ailton, um vizinho da família, mas eu não sabia o que eu fiz com Ailton, não tinha feito nada”, conta, apreensiva.
A mulher que ajudou Paloma se chama Ambrosina. Estava montada em um cavalo de pelo macio, usando uma camisola branca. Parecia um anjo. Ambrosina se aproximou dos dois e xingou o jovem que estava em cima de Paloma. O primo dela tomou um susto e fugiu. “Ela me salvou das garras do meu primo. Cheguei em casa chorando. Minha avó perguntou o que meu primo queria. Eu falei ‘eu não sei o que ele queria’. Falei o que tinha acontecido. Daí minha avó mandou recado para o pai de Carlinhos e contou tudo para ele. Eu soube que Carlinhos levou uma surra do pai”.
Depois de três dias do acontecido, Carlinhos morreu em um acidente: foi trabalhar com um trator, desequilibrou, caiu e o trator passou por cima dele.
Estudos, trabalho e a vivência em Maceió
Paloma aprendeu a dar seus primeiros passos na costura aos 11 anos, observando a avó remendando tecidos e fazendo roupas. Foi daí que a artista se interessou pelo ramo. Desde a infância Paloma gostava de olhar esculturas, contemplar peças de roupa, obras de arte e sempre costumava ser inquieta para produzir. "O interesse pela arte surgiu desde a infância, de dentro de mim mesma".
Nessa mesma época, a decoradora se viu em um turbulento ciclone de constrangimentos. Ela costumava usar cabelos grandes, shorts curtos e blusas amarradas perto do umbigo, e quando passava pelas pessoas na rua era parada e ridicularizada na frente da sua avó.
"Quando eu passava na rua algum vizinho nos parava e me tratava como menina. Mas minha avó repreendia a pessoa e dizia que eu era um menino. A pessoa reagia e pedia pra ela provar o que estava dizendo", lembra. Outra vez, Paloma estava costurando na casa de uma amiga, tranquilamente, todo mundo sorrindo e conversando, quando chegou o marido dessa amiga e não gostou do que viu. Ele acabou pegando a roupa que Paloma estava costurando e rasgou com toda a força na frente de todos. Paloma ficou sem reação e em silêncio.
Depois de relatar por mais de uma hora suas vivências, a artista subitamente liga a caixa de som já carregada e sai dançando pela área externa como se estivesse tentando expulsar o sofrimento. Ela sacode a cintura e movimenta os braços para cima ao som de Traga Passarinho, música interpretada por Adelino Nascimento, cantor maranhense considerado o rei do brega.
A aprendiz de costureira caminha até a pia da cozinha para lavar alguns pratos. De lá ela relata que se interessou tanto pela área que abandonou os estudos quando completou 14 anos. Parou no ensino fundamental e decidiu fugir para a capital de carona para ficar com a mãe, porque estava sofrendo calada, machucada por seus familiares e presa em casa.
Na escola pública onde estudava, Paloma se destacava entre os meninos mais jovens por ser muito bonita e pela sua presença marcante por onde passava. Ela conta que os meninos queriam manter relações sexuais à força na escola. Outros alunos a xingavam de "viado" ou a humilhavam. "Era tudo muito difícil por causa do meu jeito de ser. Os meninos queriam fazer coisa comigo, mas eu não deixava. A professora também ficava de olho para não acontecer isso. Aí por isso eu sou muito assustada".
"O problema todo também é que eu não sabia o que estava acontecendo comigo, mas as pessoas sabiam. As pessoas percebiam. Não só na escola, mas em todo canto sempre fui assim, não pude mudar nem vou mudar. Os homens queriam abusar de mim, mas a minha família me protegia, de uma forma dura, mas protegia", conta Paloma, depois de matar um besouro que pousava na mesa de jantar.
Saudosa, Paloma fala sobre os momentos que viveu em Maceió durante a adolescência e juventude. Entre os anos 70 e 80, a capital ainda era pequena, estava se tornando um polo turístico nacional, todos se conheciam e badalavam à noite quase sempre nos mesmos locais, como a boate Middô, o estabelecimento Fornace, restaurante Laçador e o bar do Mossoró, comerciante que mantinha também o prostíbulo mais famoso na cidade. "Foi lá que descobri o sexo. Beijei milhares e milhares de bocas, eu linda e gostosa, os homens obviamente queriam. Era tudo muito envolvente, ardente, gostoso. Fiquei com vários homens da elite. Todos queriam desfrutar do meu corpo. A coisa mais gostosa é o beijo na boca, é uma coisa que me desmantelo", diz.
A boate Middô era uma balada que foi inaugurada em 25 de maio de 1979 e teve como proprietários os empresários Eduardo e Miriam Calheiros. Tinha a capacidade de receber em torno de 700 pessoas. O local já recebeu nomes como a apresentadora e cantora Xuxa Meneghel, o socialite Chiquinho Scarpa, entre outros. Paloma também fazia história dançando e animando o público dessa boate.
Já independente, Paloma conseguiu se profissionalizar em estilismo na capital e fez diversos trabalhos para pessoas da alta sociedade. Apesar da liberdade um pouco alcançada, Paloma enfrentou aborrecimentos, preconceitos, mas sempre seguiu em frente com o que sabia fazer. "Se algo me aborreceu em Maceió eu não guardo na mente. Eu acho que em toda vida acontece coisa chata. Minha madrinha tinha muito cuidado comigo, porque todos os homens queriam me devorar. Não gosto de lembrar de coisas negativas não. Eu só me lembro de coisa boa", comenta, se esquivando das lembranças que a fazem mal.
Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca eram pequenas para Paloma. Ela também já foi estrela em uma propaganda da Produban e chegou a realizar um desfile no local onde fica hoje o Centro de Estudos e Pesquisas Aplicadas (Cepa). "Como sempre eu era a rainha, todo mundo queria Paloma. Eu tinha muitos amigos". Entre os amigos, está o ator, diretor, dramaturgo e professor Homero Cavalcante.
Atualmente, Paloma costura em casa e é dona do seu próprio negócio. Os vizinhos a procuram para fazer bainhas de calças e costurar roupas rasgadas. Donos de pousadas francesas e suíças a contratam para fazer as decorações de suítes, de mesas de jantar e fazer almofadas, estofados e cortinas. As encomendas não param de chegar.
Tudo por amor
Algumas imagens acima mostram o momento em que a voz de Paloma é exibida em um programa de rádio da região. Ela pede que sua música favorita seja tocada.
Para sobreviver e conquistar o mínimo de liberdade, já que com a família não podia estar, Paloma decidiu fugir para Maceió. Antes de ser adotada por Maria Consuelo, teve que lutar para conseguir abrigo. Ela conta que as coisas aconteciam muito rápido na vida dela, por isso não lembra exatamente o ano dos acontecimentos, mas lembra que na época que fugiu para a capital conheceu Kennedy, que era filho do dono do circo Loyde Maciel. Paloma e Kennedy se apaixonaram e tiveram um romance.
Ela foi ao picadeiro, viu o amado no palco e se encantou. Os dois conversaram e ele a convidou para morar no circo. Ficou menos de um ano. Ela também conseguiu estadia e um trabalho no Circo Birinho. Nos dois circos, Paloma cantava, dançava, animava a plateia, como também trabalhava como artista de suspensão capilar, profissional que faz acrobacias no ar presa aos cabelos. A artista viajava com os circos por Maceió e por cidades do interior de Alagoas e de Pernambuco.
"Eu fugi porque eu me sentia muito pressionada pela minha família, meus vizinhos, muito presa, eu queria a minha liberdade e fazer o que eu bem quisesse. Eu também precisava de amparo, ficar em um canto para dormir, eu não podia sair à toa, tinha que ficar em algum lugar", explica.
Foi em uma dessas viagens, no Recife, que Paloma perdeu uma grande quantidade de seus cabelos. Ela conta que o cabelo alcançava a altura da cintura e uma mulher passou um produto químico nele fazendo com que caísse quase tudo. "Só restou quatro dedos de cabelo", lamenta.
Da mesma forma que Maceió se tornava um polo turístico e era um espaço de muita confraternização à noite, ela também estava sendo palco para assassinatos de travestis e mulheres transexuais nas avenidas. A cidade estava ficando muito violenta para a comunidade LGBTQIA+. Por causa dessa violência, e também por Paloma gostar muito de sair, Consuelo a superprotegia.
Anos depois, Paloma conheceu Eduardo. Ele foi seu namorado por quatro anos. Na companhia dele, Paloma conta que viajou para Recife, Rio de Janeiro, Suíça e Tailândia, entre outros lugares. O problema é que Eduardo era muito ciumento e ela vivia fugindo dele porque se sentia muito presa.
Paloma está no banheiro da casa contando de lá o que viveu. Termina de relatar suas vivências e toma banho cantarolando a música A Paixão, da cantora Rosana. Depois de tomar banho, com a toalha cobrindo o corpo, vai até a cômoda, abre a gaveta e pega álbuns de fotos. Há retratos que revelam sua fisionomia e o comportamento nos final dos anos 90, começo dos anos 2000 em diante. Há também retratos de amores da vida de Paloma. Uma foto, por exemplo, é do Canadá, de um jovem garoto, branco, olhos grandes e fundos, cabelos lisos, com corte chanel. "Esse foi o amor da minha vida", diz ela, ao rever o retrato.
A ex-circense é casada com um jovem chamado Clayton, mais conhecido como Tatá. Paloma conta que conheceu Clayton em uma festa realizada na cidade de Porto Calvo, em 2015, local onde ele nasceu. Ela estava na região, quando sentiu que estava sendo seguida por três homens, um deles era aquele que se tornaria o seu marido. Paloma parou no meio do caminho, olhou para trás e perguntou à Clayton, que na época mudou o nome para Pedro, o que ele queria. Ele disse que estava apaixonado por Paloma e que queria conhecê-la.
Inicialmente, Clayton, à época Pedro, disse que tinha 20 anos. Ambos se encontravam às escondidas. O motivo de se encontrarem às escondidas não foi dito por Paloma, mas ela disse que anos depois descobriu pela mãe dele que Clayton tinha apenas 14 anos. Paloma não sabia que ele tinha essa idade porque "Clayton é muito alto e com aspecto de maior de idade". Ela confiou na palavra do amado.
No mesmo ano que conheceu Clayton, Paloma estava em um relacionamento com outro rapaz. O relacionamento estava chegando ao fim porque Paloma não gostava mais dele e ele também demonstrava não estar mais envolvido.
Clayton era adolescente, fingia chamar-se Pedro e mentia ter 20 anos. Depois de descobrir toda a verdade, Paloma não quis mais ficar com Clayton, preferiu se afastar, mas Clayton sempre insistia, querendo algum compromisso com ela. Paloma cedeu. Os dois completaram seis anos de união em 2021, sendo quatro deles morando juntos. Clayton mora na casa de Paloma em Porto de Pedras, mas frequentemente tem ido a Porto Calvo para passar, segundo ele, os dias com a família e amigos da região. É perceptível a preocupação e o ciúme de Paloma quando ele viaja para lá, mas ela aceita. “Ai, ele me beija com tanto carinho, devagar, é como se minha alma também fosse beijada", comenta Paloma.
A parceria com Vera Arruda
Tentando cavar suas memórias, Paloma fala dos momentos em que trabalhou com Vera Arruda, a primeira estilista alagoana de projeção nacional, com marca própria e loja prestigiada em São Paulo. Há uma relação entre seu trabalho e o trabalho de Vera. Ambas criavam peças de roupa utilizando artesanato alagoano, como rendas.
Vera Arruda, alagoana de Palmeira dos Índios, nasceu em 9 de julho de 1966. Criada no bairro de Jatiúca, frequentou lugares da elite alagoana. Em 1986, aos 20 anos, foi Miss Alagoas. Ela morreu em 2003, aos 38 anos, por não resistir ao tratamento contra um câncer.
Paloma conheceu Vera na capital alagoana. Segundo ela, ambas eram bem jovens, mas ela não lembra o ano nem a década do encontro. Vera Arruda morava na mesma rua onde Maria Consuelo, mãe adotiva de Paloma, residia.
"Eu costurava almofadas, decorava festas, muitas festas, inclusive em algumas das festas da antiga boate Middô. Nos encontramos em uma dessas ocasiões, mas não tínhamos inicialmente muita intimidade", disse Paloma.
A primeira vez que Paloma encontrou, de fato, Vera Arruda, foi em uma loja de design e decoração, um antiquário chamado "Art Design", que tinha como proprietária a artista plástica e colecionadora de arte popular, Tânia Pedrosa. Paloma estava confeccionando uma toalha de renda, tinha feito algumas almofadas e ajudava com tarefas de costura no estabelecimento, quando ela chegou no local. "Ela soube que eu estava fazendo essas toalhas e chegou lá. Vera ficou encantada com a peça que foi feita, perguntou quem fez e tudo".
Uma vez, na época, ainda na capital, Paloma visitou uma amiga em um prédio de luxo na orla marítima. Estava vestida elegantemente, com um vestido de renda e um boné feito com o mesmo tecido, uma espécie de viseira feminina. Entrou no prédio, subiu alguns andares, bateu na porta e, enquanto esperava ser atendida, encontrou com Vera nos corredores do edifício.
"Ela olhou para o meu boné e perguntou quem tinha feito. Ela ficou olhando por minutos. Eu disse que fui eu que tinha feito. Ela disse que gostou do que eu fiz. Foi a partir desse momento que a gente se conheceu melhor, fez amizade e começamos a ter uma relação de trabalho. Foi o auge. Eu fazia top, bonés, vestido, tudo com a Vera".
Para se ter uma ideia, cerca de 500 bonés foram feitos por Paloma para um desfile que Vera Arruda realizou em uma casa da família. Paloma não lembra onde e quando o desfile aconteceu, mas disse que não conseguiu estar presente. Paloma não teve mais contato com Tânia Pedrosa nem com Consuelo.
Monólogo de uma donzela em um bar
É um sábado quente, com muito sol, poucas nuvens e um movimento intenso de turistas passeando em bugres pela avenida. Paloma decide ir ao restaurante e bar do Gil, um dos points mais antigos e conhecidos da cidade. Fica perto da casa dela. Às 13h, Paloma chega ao bar vestindo a mesma saída de praia longa da cor vermelha, sandália rasteira rosa pink com pedrarias em forma de flores.
Quem está no bar para o que faz e olha para ela. Alguns olhares são de reprovação. Há pessoas nas mesas cochichando. Através de leitura labial, vimos que alguns tentam adivinhar se ela era homem ou mulher. Ela fala com todo mundo sem pudor, mesmo sem conhecer. Abraça todo mundo com um sorriso no rosto sempre maquiado.
Paloma senta em uma das mesas, bebe quatro cervejas e lamenta a ausência do marido em seu aniversário, que está na casa da irmã em Pernambuco. Logo depois, envia um áudio para o amado por meio do WhatsApp:
"Eu preciso viver, eu não quero ser contrariada, não quero ser machucada, não quero ser beliscada. Detesto beliscões. Não quero saber de ninguém, só quero saber de você. Se você não me olha com tantos defeitos, eu tento consertar outros erros. Eu preciso ser feliz, meu amor, e eu não tenho tempo para ficar esperando. Eu quero viver o momento, eu quero fazer o que eu quero, o que eu gosto, ao lado da pessoa que eu amo que é você, mas se não for possível, você me libera para eu viver as emoções. Eu entendo que você não gosta daqui, mas eu vou vender a casa pra gente morar em outro lugar. Mas pense direitinho, meu amor. Eu queria ter 15 anos para satisfazer todos os teus desejos. Te amo, até depois."
Rainha de Porto de Las Piedras
Já é domingo, faz 31 graus em Porto de Pedras, temperatura considerada muito alta no estado. Calor, chão de asfalto quente, é possível ver alguns vizinhos sob o marasmo debaixo de suas casas recebendo um pouco de ar. As casas são sempre próximas umas das outras. Paloma decide almoçar novamente no bar do Gil. No caminho, motoristas buzinam ao vê-la caminhar. "Palomita" "Paola" "Paula" "Paulinha", são alguns dos nomes que as pessoas a chamam.
Na frente de uma das casas, duas vizinhas conversam entre elas. Uma das vizinhas olha para a reportagem e fala que conhece a artista há mais de 30 anos. "É uma pessoa boa e alegre, se dá bem com todo mundo", afirma.
Usando óculos de grau com armação branca e pulseiras nos pulsos, Paloma chega ao bar e esbanja simpatia. Os olhares são todos para ela. “Sou rainha do carnaval de Porto de Pedras. Rainha de Porto de Las Piedras", afirma, exultante.
No bar, há algumas decorações feitas por ela. Proteções feitas de bambu para as lâmpadas, três peças feitas de palha coladas nas paredes, junto com colheres de pau e uma pintura de flores psicodélicas. Paloma fica em uma das mesas e vira para uma família composta por um casal cis hétero e a irmã de um deles. "Amanhã é o meu aniversário e eu tô ficando mais nova. Saúde e fogo, é isso que eu quero". Todos riem, até quem está nas mesas do outro lado do estabelecimento.
O homem da família a qual Paloma se dirigiu a reconhece. Os pais dele são de Porto de Pedras e viveram a juventude quase toda no município. Ele e a cunhada começam a relembrar do carnaval e dos blocos que Paloma participou, entre os anos 80 e 90. Segundo a mulher, Paloma sempre ia com fantasias que ela mesma fazia, sempre rainha de blocos de carnaval e desfiles de escolas de samba. "Era um abre-alas vivo, ambulante. Se apresentava poderosíssima, era uma festa. Quem fechava os carnavais era ela. Um corpão. Eu nunca vi essa mulher de baixo astral. Eu a parabenizo por resistir tanto tempo", diz o homem, que tem 47 anos.
Nesse momento, a rainha volta ao tempo, quando tinha os seus 20 a 25 anos. O semblante de Paloma se irradia ao ouvir todos os elogios e as histórias contadas. "No carnaval eu estava na frente de todos. A rainha da cama, a rainha da pista, rainha dos carnavais. Eu abria os blocos e animava. Eu me sinto uma rainha porque as pessoas me acham uma rainha". Paloma conta que participou dos blocos Filhos do Patacho e Bloco das Quengas. Em Maceió, ela já desfilou pelo bloco Filhinhos da Mamãe, que era organizado por integrantes do Museu Théo Brandão.
O último carnaval que organizou foi na Praia de Patacho, na casa de um homem chamado Guerra, em 2021, feito de forma privada, com poucos amigos, respeitando as regras sanitárias por causa da Covid-19. Ela foi “montada”, com uma coroa alegórica na cabeça, collant rosa e verde, usando um salto alto. Paloma desfilou perto de uma piscina e disse que os organizadores do encontro pagaram a ela um cachê de R$ 2 mil.
Andar esbelto na imprensa
A segurança e o entusiasmo que Paloma sente ao animar o público tem suas raízes. Elas começaram a nascer no circo, mas também teve seu desenvolvimento na TV e no jornal impresso em Maceió.
A artista foi animadora e ajudante de palco no programa do Pell Marques nos anos 90, nos moldes do lendário Programa do Chacrinha, que animava as tardes de sábado na Globo. Era um programa de auditório e de calouros, que convidava artistas, cantores, dançarinos para se apresentarem no palco. Os artistas também se enfrentavam em uma espécie de duelo. Vencia quem era o mais votado entre os jurados e o público.
Paloma era uma vedete no programa chamado Pell Marques Show, exibido na TV Alagoas, no canal 5. Ela dançava junto com outras mulheres no palco. Paloma conta que era um ambiente alegre, profissional, com bastante gente envolvida e elegante, mas era um pouco difícil porque muitas pessoas a ofereciam dinheiro por sexo ou a chamavam para fazer outros trabalhos que ela não gostava.
"Eu e as meninas tínhamos que ir com roupas que mostrassem as nossas pernas e as nossas bundas. Sempre me pediam para ir com roupas sensuais. Era para animar mesmo o público, dançar. Lembro que por eu ser linda e atraente algumas pessoas me chamavam para fazer coisas que eu não acho certo. Eu não aceitava porque eu só fico com a pessoa que gosto", conta.
A manchete do jornal impresso diário Jornal de Alagoas chamou a atenção de Paloma. Dizia: "Paloma era homem - uma linda mulher de andar esbelto, educação refinada, que usando uma minissaia deixa mostrar suas lindas pernas e chama a atenção da população". A ex-artista circense relata esse episódio com uma expressão de raiva, que vai se diluindo em um sorriso. É possível ver que ela se sente conformada. Ela não lembra o nome do jornalista que escreveu a matéria nem a data da publicação.
Dias depois, Paloma tomou um susto enquanto caminhava pela Rua do Comércio, no Centro de Maceió. Ela conta que uma grande quantidade de pessoas foi até ela admirá-la, falar e fazer fotos com ela.
"Era tanta gente que acabei entrando em uma loja que ficava ao lado da Lobrás [antiga loja de departamento] e perto do antigo cinema São Luiz, para me proteger. No começo tomei um susto, mas depois me acostumei. As pessoas insistiam e iam até a loja onde entrei. Muita gente me admirava, me reconhecia", relata Paloma, enquanto coloca cremes nos cabelos, em frente ao espelho, para tirar os nós.
O retrato
É quase noite. Paloma está agoniada e ansiosa para terminar as demandas que devem ser entregues a pousadas no dia seguinte. Ela está fazendo grandes almofadas para os sofás. Sentindo-se pesada e com a mente a mil, Paloma acende a lâmpada fixada a um fio que está pendurado perto da máquina de costura. Com os seios para fora e metade do corpo coberta por uma manta rosa, a artista começa os trabalhos. É possível ouvir o galope da máquina sobre o tecido, fechando frestas e remendando ruínas. Paloma fez isso durante toda a vida.
"Eu sou uma mulher fatal, pego na espiga e no berimbau". O jogo de palavras e a rima subversiva estão sempre à espreita para acabar com o silêncio e a seriedade. O esquecimento, o lento caminhar e a rapidez com que se cansa são indícios de que a velhice se aproxima de Paloma. Mesmo assim ela não perde o humor.
Há vários espelhos espalhados pela casa. Em cima do armário que fica perto da cama há uma fotografia colada a um dos espelhos que chama a atenção: uma mulher com cerca de 45 anos sorrindo e segurando um bebê. "É minha mãezinha com meu sobrinho". Paloma gosta de fotografias, tanto é que ainda resistem alguns retratos de seu passado, com amigos, namorados e ela sozinha em diversas ocasiões. Ela desenterra fotografias desbotadas, material que sobrou das enchentes de 2019 e de alguns anos atrás em Porto de Pedras. "Perdi muitas fotos que eu tinha da família, alguns objetos. A casa também sofreu muito com isso. Até hoje tem infiltrações", conta Paloma.
O som da máquina de costura continua preenchendo os espaços da casa. Paloma interrompe o trabalho para mostrar o retrato dela que Celso Brandão fez em 1993. Ela estava com 31 anos na época. Faz 29 anos, em 2022, que o retrato de Paloma existe e resiste em Alagoas. Ela olha profundamente todos os cantos da foto, como quem revive aquele momento. Os olhos enchem de lágrimas. "Foram tempos muito bons, que pena que não voltam mais. Saudades daquele tempo".
No dia da foto, Paloma tinha voltado para Porto de Pedras para visitar a família. Ela estava na casa de uma amiga que, segundo ela, era localizada no povoado Tatuamunha. Vestiu seu short curto, seu biquíni, calçou sua sandália rasteira e montou seu grande e esvoaçante cabelo, parecido com o que ela pôs ao conversar com a reportagem, e saiu na rua para se encontrar com mais amigas. No mesmo período, ela estava apaixonada por um rapaz chamado Luís Carlos. Havia também um circo montado na região.
Paloma saiu de um beco com as amigas e, por acaso, se deparou com Celso fotografando os palhaços e os personagens do circo que desfilavam na rua. Paloma e Celso já se conheciam do bairro da Pajuçara, em Maceió. Ela também já conhecia um dos palhaços do circo, pelo qual se encantou. Celso aproveitou que ela estava lá e pensou em fazer um retrato dela na frente de uma casa antiga, onde também tinha galhos secos retorcidos.
"Para mim foi uma coisa normal porque sempre fui fotografada. A minha maneira de ser sempre chamou a atenção. Eu me senti uma rainha sendo fotografada naquele dia. Eu sempre fui muito notada em diversos aspectos. Desde criança fui notada porque eu era diferente dos outros meninos. Aí naturalmente chamou a atenção do Celso também", explica.
Anos depois, Paloma recebeu o seu retrato impresso em grandes proporções, do tamanho de um quadro comum. O irmão dela, que é evangélico, viu a foto e com raiva o rasgou. "Ele queria que eu virasse homem". Após o relato, Paloma esmorece e volta com o trabalho de costura até a madrugada.
Diálogo com a prima que vende flau quando tem treino de futebol
Paloma aproveita que a tarde está menos quente e sem chuva para comprar zípers. É uma segunda-feira amena. O material seria usado para as almofadas e ela estava precisando urgentemente. Chegando lá, soube que não tinha e ficou decepcionada. Ela não lembrou, mas tinha comprado zíper e guardado no ateliê, o que recordaria instantes depois.
A costureira aproveitou para ir à casa da Teca, em Porto da Rua, a mesma residência onde Paloma nasceu. A casa é relativamente pequena, modesta, organizada, reformada, com mais de quatro cômodos e um andar de cima. É possível também ouvir uma televisão ligada que exibia a novela O Cravo e a Rosa, dos anos 2000. No momento que Paloma chega na casa, Teca faz flaus para vender aos meninos que jogam futebol em uma quadra perto do povoado. Ela tem cabelo curto, olhar gentil, estatura baixa, uma voz calma e está sempre atenta ao que o outro diz. Teca vende flau a R$ 1.
Ambas se abraçam na cozinha e recordam lembranças que viveram na casa e no povoado. Paloma senta e tenta ligar para um amigo de Maceió para tentar resolver a situação dos zípers. Enquanto isso, Teca começa um diálogo. “A mãe dela vivia maquiada, no quarto, toda maquiada. Igual a ela, do mesmo jeito”, diz Teca, apontando para a Paloma e falando com a reportagem. “Era mesmo. Minha mãezinha completou 80 anos dia 12 de maio e dia 11 de junho ela foi pra o céu. Minha mãezinha”, lembra Paloma, direcionando os olhos para baixo e com expressão de angústia.
“Essa mulher atentou tanto, aperreou tanto, tinha vezes que eu dava cada chega nela da pêga. Eu dava cada chega nela da gota! Ela chegava mentolada, bêbada aqui em casa, aí eu arrochava o pau”, conta Teca, enquanto Paloma, ao telefone, termina a ligação de repente ao ouvir a prima falar algo comprometedor. “Eu conversava, dava umas pressões, aconselhava. Foi não?”, Teca pergunta para Paloma. “A prima tinha que fazer isso, né. Família...”, responde Paloma, com uma expressão menos sorridente, de quem não gostou da lembrança.
A neta de Teca, chamada Kauane, de 14 anos, aparece na cozinha no meio da conversa de forma paulatina, cautelosa. Kauane é uma adolescente meiga, de dentes e sorriso grandes, olhos castanhos cor de mel, de cabelos longos e cacheados. Ela é prima de Paloma, que a abraça forte como quem quer prender alguém nos braços e nunca mais soltar. Risonha, Kauane retorna o abraço e conversa com Paloma genuinamente.
Aniversário de ausências
Ainda é segunda-feira. Durante o dia, mais quente, com muitas nuvens e possibilidade de chuva, Paloma prepara o jantar para receber os amigos. É seu aniversário. Ela não gosta de repetir a nova idade, não gosta que toquem no assunto e diz acreditar, segundo suas próprias palavras, que “ainda é uma donzela, uma adolescente virgem”. Está usando uma calça e blusa com estampa florida.
Está nervosa e ansiosa. O jantar é para comemorar o aniversário e acontece na área externa da casa. Os convidados: um casal de amigos, donos da pousada onde trabalha como decoradora, e uma amiga cis de mais de 20 anos, a Candice, conhecida por Candinha. Um encontro bem intimista.
Uma mesa farta com cheiro de coco queimado com açúcar, pratos e taças, muita cerveja, um vinho de Santa Catarina sabor tropical e um champanhe. Há também bolas como decoração. Ela mesma arruma a mesa com esmero. Um dos convidados é o francês Pierre, casado com Dany, suíça. Ambos estão há dois anos em Porto de Pedras, construindo e alugando pousadas.
À noite, após o brinde de taças, Paloma rompe o silêncio. “Estou completando uma nova idade hoje, estou mais nova, sinto que nasci ontem. Sou uma donzela! Ai como desce gostoso!”, brinca. Todos riem. “Ora, Paloma, você não é mais uma donzela há bastante tempo, viu? Eu já lhe disse. Você está envelhecendo”, diz Dany. “Não, minha Dany, estou uma donzela, tenho 25 anos. Sou linda, gostosa, meu marido me beija devagar e com muito amor”, responde. “Mas você não é mais uma donzela. Falando nisso, onde está seu marido que era para estar aqui no seu aniversário?”, pergunta Dany. Paloma esmorece e fica mais séria, melancólica. “É, né, ele está na casa da irmã, lá em Pernambuco. É bom que ele esteja na casa da família, né”, diz.
Paloma não diz nada, só escuta, como quem já sabe o que acontece, mas não quer comentar sobre o assunto ou não quer aceitar a realidade.
Os ponteiros marcam 21 horas. Os convidados começam a ir embora. Em um dos pratos, dois pedaços pequenos de cocada e um pouco de arroz. Sem pestanejar, Paloma come tudo e ainda reclama de quem deixou a comida. "É porque tem gente passando fome lá fora, né, a gente não pode estragar".
Minutos depois, Paloma recebe uma ligação de Tatá, seu marido. Por meio de uma videochamada ele deseja feliz aniversário, mas Paloma responde como quem está sozinha, abandonada. Triste, Paloma se despede do amado e desliga o telefone. Ela põe o aparelho em cima da mesa. Copos e taças vazias, pratos sujos, Paloma já bêbada tomando seu último gole de cerveja, as bolas da decoração já murchas. No fundo, a playlist para quem está com o coração partido. A noite corre. Paloma fica sozinha na mesa olhando para a lua por horas.
Paloma entre o sonho e realidade: a arte de Celso Brandão para compor retratos
Com um olhar calmo e fixo ao se direcionar para o repórter, embalado na maresia da praia de Ipioca, e dentro de uma extensa área de manguezal e um largo coqueiral, está o alagoano Celso Brandão, 71 anos, fotógrafo, comunicador visual, documentarista e ex-professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Brandão mora no Sítio Carababa, no litoral Norte de Maceió, entre os bairros de Ipioca e Pescaria, em Maceió, bem próximo ao rio Meirim. Ele é o fotógrafo que fez o retrato de Paloma.
Chegando lá, a reportagem se depara com uma estradinha de terra vermelha batida, que após a chuva transforma-se em um lamaçal.
Na casa de dois andares, espaçosa, com vista para o mar, e cheia de arte popular, o repórter é recebido por dois cachorros grandes, embora dóceis: Babalu e Fulô dão às boas vindas para as visitas esperadas pelo dono da casa. Com gestos suaves, usando óculos redondos de grau e vestindo camiseta de algodão e bermuda, Celso nos recebe na porteira que dá acesso à casa. Silencioso ao primeiro contato, mas prestativo e gentil.
A conversa acontece em sua sala de estar, rodeada de esculturas, quadros de pintura e um piano antigo, além de cadeiras, poltronas e mesas coloridas. Há trabalhos de artistas alagoanos, como a ceramista quilombola Mestra Irineia, do povoado Muquém, em União dos Palmares, e Gilberto das Máscaras, artesão de Tatuamunha, Porto de Pedras, e já falecido. No local, Babalu e Fulô ouvem atentamente a conversa.
"Desculpe, eu estava percebendo uma questão técnica aqui. Eu, como ex-professor, gostaria de dizer, vale a pena investir na lapela para seu smartphone, porque você vai ter uma qualidade superior", comentou ele durante a conversa, fechando a janela para o som do mar não atrapalhar a gravação. Lapela é um pequeno microfone que fica pendurado perto da gola da camisa, próximo ao peito do entrevistado, e é usado para a captação de sua voz. De fato, o microfone do celular acaba captando muito mais ruídos, o que prejudica o áudio da entrevista.
É uma quarta-feira ensolarada de dezembro, quase perto do verão, a estação mais esperada do ano. Um pouco antes da conversa, Brandão comenta que fez um poema curto inspirado na entrevista, e também inspirado no sonho que teve com a fotografia.
"Eu acordei de um sonho. Eu estava vendo fotografias sépias, fotografando, de um religioso que tinha vivido em um convento antigo, barroco, e era tio de um amigo arquiteto que fez minha casa. Aí eu não sabia se aquilo tudo era sonho ou se era realidade, se as coisas estavam se movendo ou não. Eu comecei sonhando com fotografia, e aí eu me lembrei que vinha uma pessoa hoje falar sobre fotografia".
Ele parece equilibrar-se entre as tarefas do cotidiano e a leveza inquietante do sonho que a fotografia transmite. "Eu acho que a fotografia te leva a viver nesse estado entre o sonho e a realidade. A realidade que se torna sonho quando vira fotografia", diz.
É possível sentir o próprio fotógrafo se perdendo em imagens desfiguradas da memória e se encontrando, logo depois.
O menino urbano com raízes do interior
A veia artística e imagética de Celso vêm desde a infância, influenciado pela vida boêmia própria dos bairros da capital alagoana, pela pintura e sempre acompanhado de literatura e cinema.
"Desde pequeno adotei esse mundo. Passei a me interessar por imagens, por arte, muito pequeno, desde a infância. Acho que o marco foi o meu jardim de infância, porque foi quando tive contato com tintas e massas. E também na Pajuçara, nas matinês de cinema. Eu tinha uma mãe que estudava escultura e um pai que gostava muito de literatura e cinema", conta.
Celso tem uma fala branda, com nuances, uma junção de notas lentas e inacabadas com um jeito de expressar feito corpo que mergulha no mundo das coisas. Cada palavra ou frase é devidamente pensada. A memória de décadas ora desvanece ora é recuperada, se perde no caminho e depois emerge no olho do entrevistado. Há uma escultura de grande porte próxima a um sofá, bem confortável, reverenciando quem olha de volta. É um tipo de carranca de cores pretas e azul. Todas as obras da casa parecem se envolver na conversa, vigiando o anfitrião.
Aos 13 anos, o fotógrafo ganhou uma câmera de presente de Natal. Foi a partir daí que ele começou a captar imagens e a sentir que aquilo podia ser um caminho. Nascido em Maceió, em 1951, Celso fez suas primeiras fotos e vídeos no quintal da casa da avó, em Viçosa, e também nas ruas da cidade. Foi para Recife em 1972 e ficou na cidade cerca de nove anos para cursar desenho industrial e comunicação visual, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Anos depois, voltou para Maceió e ingressou na Universidade Federal de Alagoas, como professor de fotografia.
Celso acredita que ter nascido na parte baixa de Maceió e ter a vivência no interior de Alagoas onde, nos anos 50 e 60, havia muitos folguedos, entre eles, centenas de grupos de Guerreiro, e um celeiro de arte popular, contribuiu para a construção do seu olhar na fotografia. Aos sete anos, ele também participou do pastoril da matriz de Viçosa com sua avó e transitou com olhar atento pelas feiras de Delmiro Gouveia e Água Branca, no sertão alagoano, por volta dos 19 anos.
"Foi uma experiência inesquecível. Subi no palco para me apresentar”, lembra. Ele recorda ainda da relação que seu pai tinha com cultura popular. “Meu pai tinha um primo que era o Dr. Theo Brandão [conhecido pesquisador e folclorista alagoano]. Meu pai tinha uma coleção de arte popular. No gabinete dele tinha uma estante que ocupava a parede inteira. Tinha muita arte na frente dos livros", lembra Celso.
Para ele, os retratos são testes que todo fotógrafo tem que passar para, finalmente, ser identificado como um fotógrafo. Ele também conta que os artistas são pessoas mais abertas ao diálogo, às imagens, porque eles têm um trabalho a mostrar. "O retrato é a prova dos nove do fotógrafo, porque é onde ele se desnuda como pessoa, como agente. Meu trabalho também está mais focado em biografias de artistas da cultura popular, abordagens sobre artistas." Celso acredita que fotografa pessoas quando se identifica com elas. Quando elas chamam a atenção pela beleza, pela personalidade, pelas atitudes no local onde reside e por seus comportamentos.
A santa, o palhaço e o fotógrafo
É 1993, povoado Porto da Rua, São Miguel dos Milagres, litoral alagoano. Faz sol com poucas nuvens e muita gente voltando da praia. Carros com turistas passam para lá e para cá. Pousadas cheias. O encontro improvável e casual entre as pessoas envolvidas no retrato de Paloma está prestes a acontecer no meio de uma das ruas do vilarejo.
Antes do retrato ser feito, Celso estava em Tatuamunha, povoado também localizado no litoral norte do estado, em Porto de Pedras. Foi visitar o seu amigo de longa data, o Gilberto das Máscaras, artesão de arte popular que também era pescador e pedreiro. Celso terminou a visita na casa de Gilberto e decidiu voltar para Maceió. No caminho de volta, o fotógrafo, que é curioso por natureza, acabou parando em Porto da Rua para fazer fotos de um cortejo de um circo que havia chegado recentemente no povoado.
No meio da rua é possível ver um amontoado de crianças rindo, a estrada repleta de confetes, palhaços, dançarinas, carros de som alegóricos anunciando a chegada do circo e o horário do início dos trabalhos. "Hoje tem espetáculo, às sete horas da noite. Hoje tem show, não percam", anima um dos locutores.
O fotógrafo se aproxima desse cortejo e começa a fazer fotos do sorriso das crianças, do gracejo dos pais, dos palhaços e ouve atentamente o barulho do mar. Nesse momento, surge de um beco, que serve como atalho para a entrada da praia, uma garota com cabelos grandes e cacheados, olhos castanhos claros, vestida com um top e um short, roupas artesanais, feitas por ela mesma. Ela estava acompanhada de amigos.
Celso olha para o lado, contempla a luz que vibra da imagem de Paloma, e tem a ideia de fazer um retrato dela. O retrato foi feito depois que ele fotografou o palhaço. "Chiquíssima, como sempre", Celso diz, sorrindo e nostálgico, ao falar sobre o momento. "Quando fiz o retrato de Paloma eu senti que era um retrato que tinha muita força. Está parecendo uma santa ali".
"Ela e o palhaço se conheciam e se abraçaram. Fotografei eles abraçados, mas não encontrei ainda as imagens. Foi uma alegria. Fotografei o palhaço e depois pedi a Paloma para ficar na frente de uma fachada para tirar uma foto dela. Ela subiu, pulou em cima do muro, e fez aquela pose, que me lembrou muito a pintura Madonna di San Sisto, realizada pelo artista italiano Rafael Sanzio. Só não tinha o bebê no braço", conta o fotógrafo.
Paloma foi captada por uma Mamiya RB 67, uma câmera de médio formato, robusta e pesada. A câmera é utilizada em estúdio e geralmente apoiada em um tripé, mas ele resolveu levá-la para a rua, na mão, como uma câmera convencional. "A escolha pelo preto e branco foi por considerá-lo mais genuinamente fotográfico, com um tempo de permanência mais duradouro que a foto colorida e também pela possibilidade de processar pessoalmente, em meu laboratório caseiro, tanto o negativo, quanto a cópia positiva, segundo meus critérios estéticos", explica.
“Conheci Paloma como a travesti da Pajuçara”
O fotógrafo também lembra que depois de ter feito o retrato de Paloma, percebeu o quanto ela é romântica, daqueles amores de perdição, um amor sofrido. Paloma só pensa no grande amor da vida. Ele já a conhecia de Maceió, não a via há uma década, mas só teve a oportunidade de fotografá-la em 1993. Celso tinha 42 anos.
"Eu conheci Paloma como a travesti da Pajuçara. Naquela época, Maceió ainda era pequena. A conheci como uma exímia costureira, considerada por Vera Arruda e Tânia Pedrosa como alguém que executava peças de alta costura", conta.
Celso também conta que a relação entre ele e Paloma é muito brincalhona, porque Paloma é alegre. Ele até voltou à região anos depois e realizou uma sessão de fotos com Paloma. Ela foi retratada nua. O fotógrafo fica surpreso ao saber que Paloma ainda resiste no mesmo local, trabalhando como decoradora de pousadas e estilista. "Que sorte Paloma estar viva. Na época, as travestis eram assassinadas em Alagoas. Eram assassinadas como se fosse uma brincadeira. Uma barbárie".
A caixa-preta de Celso Brandão e o elo perdido com Maceió
Celso expressa um ar de angústia ao falar sobre a publicação de fotolivros em Alagoas. Ele lembra que naquela época era difícil uma gráfica publicar algo autoral e ainda mais com fotos em preto e branco. Para ele, o documentarista em cinema e o fotógrafo já têm o senso inato das coisas que tendem a desaparecer. "Porque o mundo é efêmero". E para as coisas não desaparecerem, o fotógrafo executa seu ofício: para o fotografado não perder a memória e o sentido de pertencimento, Celso capta a essência daquele momento do fotografado e transforma em eternidade.
Esse mesmo cuidado é visto em Caixa-preta, fotolivro publicado em 2016, pelas editoras Madalena e Contrasto, cujas fotos compõem a exposição Celso Brandão: Caixa-preta, que foi apresentada na Maison Européenne de la Photographie, de junho a agosto do mesmo ano. "O retrato de Paloma é um dos meus trabalhos preferidos. Foi a maior fotografia em diâmetro. Eram duas salas compridas, e o retrato ficou sozinho em uma das salas", lembra Celso sobre a participação do retrato de Paloma na exposição.
A foto de Paloma está na página 55 do livro e compõe o acervo antigo de Celso, com mais de 80 fotografias feitas durante a trajetória do artista. O livro demorou dois anos para ficar pronto. No livro, há na contracapa informando que a produção da obra teve a contribuição de Miguel Rio Branco, Pierre Devin, Fábio Karla Melanias, Márcia Mello, Fábio Settimi, entre outros.
"Na época em que eu estava procurando um título para o livro estava caindo muitos aviões, e a caixa-preta era o que restava de memória dos aviões depois do desastre. Preto e branco representam o meu passado fotográfico, tudo que está em caixa-preta está relacionado a minha vida. Está tudo dentro do meu universo aqui em Alagoas, no Nordeste", explica Celso.
O retrato de Paloma passou por Paris, Brasília e Rio de Janeiro. Durante o percurso das exposições no Rio, o retrato desapareceu e não se sabe o que provocou o sumiço. "Até hoje não se sabe onde está a foto original. Não tem outra cópia, só a que está no livro Caixa-Preta", conta.
Atualmente, Celso Brandão tem trabalhado com arquivos de fotos e vídeos antigos no laboratório existente em sua casa. Documentários de curta duração sobre artistas da cultura popular de Alagoas são publicados por ele mesmo no seu perfil do Instagram. Ele também tem trabalhado com documentários, por exemplo, o professor Edson Moreira, professor e historiador que montou em casa uma espécie de museu sobre a cultura africana no Brasil. Um novo livro de fotografias coloridas sobre o Baixo São Francisco, intitulado Velas, coordenado pelo francês Pierre Devin, também está sendo finalizado, mas até o fechamento dessa reportagem não havia uma data para a publicação.
Questionado sobre a vivência em Maceió referente à fotografia, Brandão desabafa que sente que está perdendo um elo grande com a capital, que ele não reconhece mais a cidade e está indo aos centros urbanos com menos frequência. "Moro aqui há 30 anos e estou indo a Maceió cada vez menos. Não reconheço mais a minha cidade. O centro da Cidade, por exemplo, está uma decadência, uma tristeza, não fotografo mais por medo".
Nove minutos sobre o retrato de Paloma
Outra pessoa que conheceu a “rainha de Porto de Pedras” foi Rafhael Barbosa, jornalista e cineasta alagoano. Ele é diretor do curta-documentário Um retrato de Paloma, com duração de nove minutos, realizado em 2016, com imagens de Paulo Silver, entrevista e fotos do próprio Rafhael e de Ítalo Rodrigues. "O filme aconteceu no dia em que fui de passagem a Porto de Pedras. Paloma é muito conhecida por lá e muitas pessoas comentavam sobre ela. Então fomos lá gravar. Ela é uma figura", lembra o cineasta e ri.
O documentário mostra simultaneamente o retrato de Paloma e ela mesma contando histórias da época em que a foto foi feita. Em todo o seu discurso, percebe-se que existem o romance e o amor na base de sua vida. Paloma fala sobre suas vivências amorosas e um pouco da infância e dos momentos entre família que foram registrados por meio de fotos.
"Eu amo muito e sofro mais ainda. No momento da foto, como sempre, eu estava apaixonada. Eu estava vivendo um romance muito bonito, o nome dele era Luis Carlos", conta Paloma no filme.
No começo do curta, Paloma resume bem sua vivência no mundo quando canta um pedaço de A Paixão, música de Rosana, que diz: "A paixão é um vício que não quer passar, me faz fugir, depois voltar. E é por isto que eu preciso desse novo amor".
A seguir, ouça um trecho da entrevista com a psicóloga e sexóloga Milka Freitas:
Origem do movimento LGBT e a realidade trans em Alagoas
Final do expediente, quase noite de uma quinta-feira de novembro, tempo nublado. Apesar disso, ainda consigo ligar para Natasha Wonderful da Silva, travesti, negra, militante, de Pernambuco que, desde os 13 anos, vive em Maceió. Neste horário, ela comenta que se arruma para ir ao plantão do Consultório de Rua, um projeto do município que tem como objetivo dar assistência a pessoas em situação de rua ou em vulnerabilidade social. Diz também que está se achando linda com a mudança física que fez na boca.
Assim como Paloma, Natasha também foi rejeitada desde criança. Ela foi adotada por uma mulher quando tinha dois anos, mas ficou novamente sozinha depois que essa mãe adotiva faleceu, há 25 anos. Quando criança teve que morar em um orfanato, depois, para sobreviver na capital alagoana, tornou-se prostituta aos 13 anos. Anos depois, conseguiu passagem para São Paulo, viveu um tempo no estado e depois viajou para Itália, onde também resistiu como travesti e fazendo programas. Voltou para Maceió e aqui se instalou, criando também o Transhow, grupo de travestis e transexuais que realiza shows, eventos, espetáculos de teatro e performances ao vivo. O grupo fazia três ou quatro shows por mês antes da pandemia da Covid-19.
Natasha tem uma fala apressada e espontânea, como quem quer dizer a história o mais rápido possível para poder se distanciar do passado. Ela festeja muito o presente. Hoje, é presidente da Associação Cultural de Travestis e Transexuais de Alagoas (Actrans), que dá suporte para a comunidade trans sem oportunidades. Segundo a associação, há cerca de 200 travestis vivendo na parte baixa de Maceió, composta pelos bairros Levada, Bom Parto, Vergel do Lago, Ponta Grossa, entre outros. Não há informações sobre a quantidade total dessa população no estado.
Entre as atividades da Actrans estão doação de cestas básicas, realização de cursos profissionalizantes, orientações jurídicas, criação de documentos e suporte para retificar nomes sociais e gêneros em documentos.
A presidente da Actrans comenta que na época que fazia programas na região do Mercado da Produção, na Levada, nos anos 2000, foi vítima de xingamentos, de agressões físicas e até de homens que jogaram pedras contra ela. Os agressores gritavam, vaiavam e a perseguiam.
"A gente que é travesti tem que procurar outro lugar para sobrevivência. Ou morre ou sobrevive. A gente era presa por nada na rua. As travestis e os afeminados sofrem mais. Maceió hoje é outro paraíso. Antes matavam muito as travestis, mas não tinha visibilidade, hoje tem mais visibilidade por causa da tecnologia. Antes éramos tratadas pelo masculino. Hoje até o nome social conseguimos ter. Mas é muita pouca vaga para travesti no mercado de trabalho. É aquilo: tem no papel tudo bonitinho, mas na prática é outra coisa", relata Natasha.
“As travestis eram os principais alvos na Praia da Avenida”
Marcelo Nascimento, de 48 anos, bacharel em direito, com mestrado em direitos humanos e pós-graduação em educação. Por telefone, é possível ouvir objetos sendo guardados, pessoas limpando o local. É uma manhã de sexta-feira, final de outubro. Com a voz suave e uma boa oratória, Marcelo explicou como foi ser um dos fundadores do movimento LGBTQIA+ em Alagoas, junto com Wilson Ruas, Jorge Márcio, entre outros.
Nascimento trabalha com direitos LGBT há cerca de 30 anos. Ele conta que conheceu Paloma, mas não eram amigos. Segundo ele, Paloma é uma das primeiras travestis do estado. O movimento surgiu em meados dos anos 90, mas já nos anos 80 estava sendo discutido em Alagoas.
As principais razões para a criação do movimento, que também envolveu os campos artístico e intelectual, foi a grande quantidade de violência e de assassinatos contra pessoas LGBT, especialmente travestis, e o assassinato do vereador da cidade de Coqueiro Seco, em Alagoas, Renildo José dos Santos. Em um dos momentos de sua fala, o bacharel em direito critica a oligarquia alagoana e o patriarcado, e afirma que a violência contra gays e travestis é exatamente motivada por quem acha que tudo que é diferente da heteronormatividade deve ser colocado à margem.
"Então começamos as primeiras discussões sobre a necessidade de fundar uma entidade representativa e que articulasse os direitos da comunidade. Na época, existia a Gangue Fardada, que era um grupo que matava pessoas políticas e, principalmente, pessoas LGBT. As travestis eram os principais alvos na Praia da Avenida, local de prostituição em Maceió. Eram crimes muito cruéis, sobressaiam pela crueldade. A quantificação comparada aos assassinatos de hoje não era tão significativa, mas havia mais crueldade. Geralmente as vítimas eram mortas por muitos disparos de arma de fogo, mais de 40 facadas, decepação de órgãos genitais. Por puro ódio", conta Nascimento.
Segundo alguns contemporâneos de Renildo, o vereador era bissexual. Outros já afirmam que ele era homossexual. Em jornais da época, como a Gazeta de Alagoas e Jornal de Alagoas, Renildo foi descrito como homossexual. Foi assassinado dentro de casa a mando de um fazendeiro do município, em março de 1993, por ser da comunidade LGBTQIA+, por defender os direitos dos trabalhadores da cana-de-açúcar e os mais pobres. O caso chamou a atenção até da Anistia Internacional e em 1994 entrou no relatório sobre "violações dos direitos humanos dos homossexuais".
O julgamento desse caso foi adiado onze vezes. O primeiro julgamento aconteceu em 2006, 13 anos após o crime. O fazendeiro mandante do crime José Renato de Oliveira e o tenente da reserva da Polícia Militar de Alagoas, que executou Renildo, Luiz Marcelo Falcão, foram condenados a mais de 20 anos de prisão. Em 2015, os dois réus se entregaram à polícia.
O cenário LGBT dos anos 90 é relatado por Marcelo com um certo peso, até porque foram tempos difíceis e a problemática era manifestada em praça pública. Segundo ele, setores da religião e políticos pregavam e estimulavam a violência contra a comunidade de forma escancarada.
"Teve uma vez que um pastor, na década de 90, espalhou um outdoor dizendo que a homossexualidade era um pecado. Outro dia, convidei esse mesmo pastor para debater comigo em um programa de televisão sobre a declaração dele e questionei porque era pecado. Ele não soube argumentar e passou vergonha. Já sofri muitas ameaças de milicianos por causa da minha participação em movimentos. Não só eu, muita gente já sofreu", conta.
Marcelo Nascimento, que já viveu em uma época de repressão, hoje tenta costurar os fatos vividos no movimento por meio de arquivos e documentos. Ele começou uma pesquisa em maio de 2021 para escrever um livro sobre a sua trajetória e a fundação do movimento LGBTQIA+ em Alagoas, mas ainda tem dúvidas se o livro não acabará sendo substituído por um documentário audiovisual. O trabalho de pesquisa está em processo.
Em mais um áudio, Milka fala sobre identidade de gênero e questões sobre o assunto. Ouça:
Acolhimento em tempos de violência
É uma terça-feira de novembro, tempo quente, o vento passeia rasteiro pela janela do primeiro andar da casa do repórter. Há som de canto de pássaro em duas mangueiras, de noticiário na televisão ligada, de porta metálica sendo serrada na esquina e de gente fazendo reforma em suas casas. A reportagem liga para a bacharel em direito, pedagoga e coordenadora do jurídico do Centro de Acolhimento Ezequias R. Rego (CAERR), Rosângela Sant'anna.
Depois de três tentativas, Rosângela atende de forma prestativa. É uma voz ativa, potente. Segundo Rosângela, oito pessoas trans estão abrigadas no centro. "Essas pessoas fugiram de casa porque a família rejeitou, duas delas estavam morando na rua e precisaram ficar no abrigo". Mais de 100 pessoas trabalham em equipes divididas em áreas como, por exemplo, saúde, psicologia, psiquiatria, esporte, lazer, empregabilidade, entre outras.
O Caerr, sustentado por meio de doações, funciona como um tipo de suporte para pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade, auxiliando-as, já que a maioria dos órgãos públicos de Alagoas não funciona de forma ativa e não acompanha casos que aconteceram no meio dessa população. Rosângela diz que 26 pessoas transgênero conseguiram mudar de nome e gênero nos documentos oficiais em setembro de 2021. A iniciativa foi por meio do Caerr, em parceria com o Tribunal de Justiça de Alagoas.
Casos de violência e assassinatos também já chegaram no centro. Sant'anna relata que os casos que mais chegam no setor jurídico é de violência doméstica. "O marido ou o companheiro fica com raiva após o término e bate nas vítimas ou as persegue. Muitos companheiros se aproveitam da bondade das travestis para comprar ou abusar das condições financeiras delas, usam seus cartões até estourar. São relações abusivas", explica.
A maioria das travestis que são vítimas de violências e assassinatos não tem sua dignidade preservada e os casos acabam sendo esquecidos pela polícia e por familiares. Apesar da falta de celeridade, Rosângela comenta que as coisas estão mudando no campo jurídico. "Os casos não são solucionados porque a família deixa pra lá, não corre atrás. Estou aprendendo bastante com a comunidade, lutando junto com eles por direitos, estou amando. É o que eu digo sempre a eles: 'Não desistam de lutar por seus direitos'”.
Messias Mendonça é de Belém do Pará, mas sua mãe é alagoana. Tem 40 anos e desde os 15 faz parte do movimento LGBT em âmbito nacional. Atualmente ele é presidente eleito do Conselho Estadual de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT de Alagoas. O conselho é formado por 21 pessoas: 11 da sociedade civil e 11 do governo. Segundo ele, vivemos em um estado coronelista e homofóbico, que mais mata LGBT, e que o conselho é uma ferramenta, para quem sabe usar, de conhecimento e de grandes focos. O conselho vem atuando desde 2015.
Messias conhece e já conviveu com travestis e mulheres trans e acredita que essa população é a que mais precisa de acolhimento. "Algumas travestis, pelo fato de se prostituírem à noite, não têm tempo de trabalhar durante o dia e aí acabam perdendo. E também pela escolaridade dessas mulheres, difícil para arrumar emprego. Existe esse preconceito muito grande com as mulheres transexuais em Alagoas".
Com uma certa paciência na fala e em tom de explicação, Messias conta também que a maioria das travestis e transexuais vem de fora do estado. Apenas 30% são transexuais alagoanas. "De 100 mulheres trans, hoje, temos 30% delas em Alagoas. Outras travestis vêm de fora do estado. Mais 30% estão no presídio, por furto, roubo, uso e tráfico de drogas, por falta de oportunidade", diz.
“O transfóbico mata a travesti no ponto de prostituição porque ele quer matar o desejo dele”
Paloma, Natasha, Victória, Dandara, Suham. Todas travestis e mulheres transexuais que já foram rejeitadas por familiares devido às suas identidades de gênero e orientações sexuais. Muitas enfrentaram até a ditadura militar brasileira em Maceió, período em que o preconceito era propagado no meio da rua. O que vemos hoje não está sendo tão diferente.
A diferença é que casos como o de Natasha Wonderful, hoje, são divulgados nas redes sociais e denunciados por meio de vídeos, relatos e fotografias.
"Quando o transfóbico vai e mata a travesti no ponto de prostituição, ele está matando o desejo dele. Ele não mata a travesti do nada, ele mata o seu desejo. Ele está matando a raiva, às vezes matando a inveja de não ser o que gostaria de ser. Às vezes as pessoas matam as outras por inveja da liberdade da outra pessoa ser o que ela é", explica a psicóloga e educadora sexual, Milka Freitas, que também é integrante da Actrans e cis aliada da causa trans em Alagoas.
A conversa aconteceu no começo de novembro de 2021, em um domingo de sol. Em uma videochamada que durou quase uma hora, Milka, com seus olhos claros, cabelo curto e espontaneidade na fala, conta que se integrou à causa trans em 2010. Foi a partir dela que travestis e transexuais do estado conseguiram ser protagonistas de suas histórias em programas de TV e rádio.
"Na mídia, as pessoas trans não entravam na TV nem no rádio. Elas não entravam. As pessoas olhavam com estranhamento, as tratavam no masculino. Foi um processo de conversa, de trazer as pessoas da produção para rever ideias sobre as questões. Quando levamos uma travesti, independente se ela é profissional do sexo ou não, para compartilhar de nosso momentos e não só de uma pesquisa, isso faz toda a diferença".
Milka está na sala de sua casa e, sempre com respostas diretas, mostra um livro sobre Psicologia Social e conta o motivo de estar aliadas à causa trans. Ela também explica, com a voz embargada, emocionada, o que pode influenciar para o adoecimento de pessoas trans. Entre os fatores externos estão a família, a religião e a sociedade.
"Como também a escola. Muitas escolas não estão preparadas para receber pessoas trans. E é muito doloroso saber que é a própria família que está empurrando essa pessoa para o caos. É preciso acolher. Basta uma menina ou um menino sair um pouco do padrão que a família idealizou, aquela criança já começa a sofrer exclusão e uma opressão dentro de casa. O índice de evasão escolar e falta de comprometimento da escolaridade das pessoas trans é altíssimo, principalmente das travestis", explica.
A psicóloga também diz que muitas travestis não terminam o ensino básico por causa da família tóxica e da escola que ajuda a ensinar o preconceito, a indiferença. "Elas acabam indo para o semianalfabetismo". Milka encerra a conversa dizendo que o corpo da travesti e transexual é muito negligenciado e que a família é aquela que a gente constitui.
Em Alagoas, a invisibilidade
As travestis e as mulheres transexuais, como também os homens transexuais/transmasculinos, são colocados à margem em todos os aspectos sociais e culturais da sociedade. Tudo que é considerado diferente da heteronormatividade é posto em última instância e pouco visto por órgãos públicos, hospitais, empresas, entre outros locais onde a regra básica é escolher os trabalhadores por sexos já definidos por seus nascimentos: homem e mulher (masculino e feminino).
É possível ver também que há na entrelinhas de atendimentos hospitalares a recusa em atender pessoas trans por seus nomes sociais, nomes retificados em documentos. Há casos em que o homem trans fica grávido e é atendido por uma enfermeira ou médico por seu nome antigo, o que causa constrangimento e trauma. Ou até em cartórios ou no Instituto Médico Legal (IML), onde tratam a pessoa trans que morreu por seu nome antigo, tirando toda a dignidade e luta daquela pessoa que sempre viveu à beira da morte e da crueldade humana.
Em Alagoas não é diferente. A reportagem tentou contato com assessorias de diversos órgãos de segurança pública, de perícia, da saúde, dos direitos humanos, e nenhum deles atendeu o chamado ou não tinham informações precisas sobre a vida de travestis e transexuais no estado. A alternativa foi tentar contato por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Por serem excluídas, as travestis acabam se escondendo nas sombras ou nas sombras da sociedade alagoana. A maioria dos dados, nem todos suficientes, já que há subnotificações ou são retirados a partir do que foi publicado na imprensa, são organizados por ONGs, instituições filantrópicas ou centros de acolhimentos.
Pesquisa traz dados sobre violência contra pessoas LGBT no Brasil
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) é uma das instituições que fazem o papel dos órgãos públicos de verificar, pesquisar e organizar dados sobre travestis e transexuais no Brasil. A equipe utiliza um mecanismo tecnológico que pesquisa informações dos assassinatos e violências dessa população a partir do que foi divulgado na mídia e também por meio de denúncias.
Esse acompanhamento é necessário anos após anos para medir a proporção desses crimes contra a população trans e fazer com que a sociedade reflita sobre as suas ações e preconceitos no cotidiano, como também propor políticas públicas. Até porque a pessoa que mata uma travesti está inserida em uma sociedade que compactua com a cultura machista e transfóbica, que é ensinada desde a infância a rejeitar o que é diferente do gênero de nascimento.
Segundo dados da associação, em 2021, cerca de 140 assassinatos de pessoas trans foram registrados, sendo 135 travestis e mulheres transexuais e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas.
Alagoas ficou em 16° no ranking de assassinatos por estado, com dois casos. Em 2020, o estado registrou oito assassinatos, ficando em 6° lugar. Isso significa que houve uma queda no número de mortes. Lembrando que são números visíveis na imprensa e em outros canais para obtenção de informações. É possível que mais travestis e transexuais tenham sido assassinadas, mas que não foram registradas.
São Paulo foi o estado que mais matou a população trans em 2021, com 25 assassinatos, e se manteve no topo do ranking pelo terceiro ano consecutivo. Além de São Paulo, Bahia, Ceará e o Rio de Janeiro estão entre os cinco primeiros com maior número de assassinatos desde 2017.
Ainda em 2021, o Nordeste apresentou queda, enquanto as demais regiões apresentaram aumento no número de assassinatos. Na região Sudeste, 49 assassinatos foram registrados, o que equivale a 35% dos casos. Em seguida, a região Nordeste, com 47 casos (34%); Centro-Oeste, 15 casos (11%); Norte, 14 casos (10,5%) e o Sul, com 13 casos (9,5%). Em 2020, o Nordeste registrou 43%. Mesmo com a queda de casos, a região se manteve como a segunda região que mais mata pessoas trans no Brasil.
O levantamento também mostra que a idade média das vítimas é de 29,3 anos. Cinco vítimas tinham entre 13 e 17 anos, 53 vítimas tinham entre 18 e 19 anos; 28 vítimas tinham entre 30 e 39 anos; 10 entre 40 e 49 anos, 3 vítimas entre 50 e 59 anos; e 1 vítima entre 60 e 69 anos. A maioria dessas pessoas era preta, da periferia, expulsa de casa, de classe baixa e que mora em situações precárias.
Alagoas não tem cirurgia de redesignação sexual
A reportagem tentou contato com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesau) de Alagoas por e-mail, ligação e WhatsApp, mas os setores responsáveis pelo público LGBT não têm dados sobre a quantidade de trans e travestis que frequentam os ambulatórios e quantos locais como esse são mantidos em Alagoas. A secretaria respondeu por meio da assessoria que o estado não disponibiliza a cirurgia de redesignação sexual, mas não explicou o motivo.
Há dois ambulatórios LGBT em Maceió, no Hospital Universitário e no Hospital Metropolitano, onde são realizados atendimentos para essa população. Os serviços são a hormonioterapia, para pessoas transgêneros, atendimentos psicológicos e psiquiátricos. A secretaria não informou se os locais realizam mais serviços além dos que foram citados.
Solicitamos informações sobre o número de travestis e transexuais que estão sendo atendidas nos três ambulatórios LGBTQIA+ nos hospitais do Estado; a quantidade de pessoas trans que estão no processo de transição em 2020, se a procura por esses postos de atendimento aumentou ou diminuiu; e a confirmação da quantidade de ambulatórios que prestam esses serviços para as travestis e mulheres trans. O repórter solicitou as informações no dia 25 de outubro por meio da LAI, e a resposta chegou no dia 26 de novembro. O órgão respondeu que a solicitação foi encaminhada para outro setor responsável da Sesau. Mais uma vez, não houve envio de dados.
A reportagem conseguiu encontrar no Diário Oficial do Estado (DOE), do dia 19 de abril, uma portaria publicada sobre a definição da linha de cuidados às pessoas LGBT, em especial às travestis e transexuais. A Secretaria de Estado da Saúde (Sesau) publicou a portaria número 2.744, de 15 de abril de 2021, que garante a inclusão da população trans no atendimento em postos de saúde e na realização do processo transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O processo transexualizador assegura o atendimento integral de saúde às pessoas trans, incluindo acolhimento, uso do nome social, hormonioterapia e cirurgia de redesignação sexual. Não há informações se as cirurgias já vêm sendo realizadas, de fato, no Estado.
Segurança pública do Estado
A reportagem entrou em contato com a Segurança Pública do Estado (SSP-AL) por meio da assessoria do órgão e também pela LAI, para saber sobre o número de assassinatos de pessoas trans em Alagoas, mas não obteve retorno.
Perícia Oficial de Alagoas
Entre os órgãos procurados, apenas a Perícia Oficial de Alagoas respondeu a reportagem com alguma informação sobre o assunto. A solicitação foi feita no dia 9 de novembro e a equipe respondeu dois dias depois. Foi solicitada a quantidade de assassinatos de travestis e mulheres transexuais, o número total de crimes de violência e quais os motivos, como também as causas das mortes, a exemplo de arma de fogo, objeto cortante, faca, estrangulamentos, entre outros.
O órgão respondeu que o Instituto Médico Legal de Alagoas, formado pelas unidades de Maceió e Arapiraca, realiza os atendimentos de acordo com o sexo biológico definido na certidão de nascimento, que refere-se à convenção social que designa como masculino, feminino e intersexo o gênero de pessoas, segundo a aparência morfológica dos seus genitais.
Diz o comunicado enviado pelo órgão: "Informamos ainda que o preenchimento desses registros são realizados, respeitando as normas do Ministério da Saúde implantadas, desde 1976, através do modelo único de Declaração de Óbito (DO) para ser utilizado em todo o território nacional, como documento base do Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM. Por fim, esclarecemos que não existe uma legislação vigente tanto no âmbito federal ou estadual que garanta às pessoas LGBTQIA+ a inclusão da identidade de gênero na declaração ou certidão de óbito". O IML de Alagoas também não possui dados estatísticos de pessoas trans.
Secretaria de Estado do Trabalho e Emprego
Por fim, a reportagem tentou obter dados, junto à Secretaria de Estado do Trabalho e Emprego, sobre empregabilidade de travestis e transexuais em Alagoas. O órgão informou que buscou dados junto ao Sistema Nacional de Emprego (Sine) para verificar se acaso consta algum registro das informações requeridas, mas não obteve sucesso na pesquisa, o que significa que não há dados sobre a população trans no sistema.
Como vimos, a violência às travestis e mulheres trans se estende aos mais diversos campos da sociedade, até em áreas institucionais. Porém, a violência não só é dos cartórios e do IML, por não colocarem os nomes sociais delas nos registros, mas também da própria família que as enterra com roupas masculinas, por exemplo.
Ocupando espaços
Por outro lado, vem crescendo a quantidade de pessoas trans ocupando espaços que antes não eram acessíveis, como universidades, na saúde, púlpitos políticos, em concursos públicos, em empresas privadas, dentre outros. A assistência a essa população também vem se estabelecendo, inclusive em Alagoas.
Em 2013, o Estado criou o Conselho Estadual de Combate à discriminação e promoção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (CECD/LGBT), órgão colegiado de caráter deliberativo e integrante da estrutura básica da Secretaria de Estado da Mulher, da Cidadania e dos Direitos Humanos. Esse conselho tem a finalidade de propor, acompanhar, monitorar, fiscalizar e avaliar políticas públicas para o público LGBTQIA+, destinadas a assegurar a essa população o pleno exercício de sua cidadania.
Também em 2013, o Ministério da Saúde elaborou e publicou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, instituída pela portaria número 2.836, de 1º de dezembro de 2011, e pactuada ela Comissão Intergestores Tripartite (CIT), conforme resolução número 2 do dia 6 de dezembro de 2011, que orienta o Plano Operativo de Saúde Integral LGBT. A Política LGBT é composta por um conjunto de diretrizes cujo objetivo é propor estratégias e metas sanitárias.
A Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) de Maceió também tem investido em palestras, seminários, eventos e ações em prol da população LGBT, especialmente às travestis e transexuais. Os eventos geralmente acontecem em datas que lembram a luta da comunidade LGBT contra o preconceito e a falta de políticas públicas, como o mês de combate à LGBTfobia.
Audiências públicas também vêm sendo feitas na Câmara dos Vereadores de Maceió junto a políticos, movimentos sociais e conselhos municipais. No dia 27 de setembro de 2021 houve uma audiência com líderes de movimentos sociais, representantes governamentais e integrantes de ONGs, para discutirem saúde, educação e segurança para a população LGBT.
Atualizações:
Em julho de 2022, Paloma contou que mudou-se para uma localidade em Ipioca, bairro de Maceió. Ainda está casada com Tatá e vivendo de costura e decoração de pousadas. Ela também disse que vendeu sua antiga casa em Porto de Pedras porque queria tentar outra vida em outro lugar. Paloma segue cantante.
Em setembro de 2022, Celso Brandão publicou um livro de fotografias chamado Velas.
Parabéns pela matéria, Jamerson. Grande contribuição para o jornalismo alagoano e registro da comunidade LGBTQI+ local. Continue escrevendo assim e sempre terá alguém como eu para apreciar seus trabalhos. Laís Falcão. <3